roberto p
2008-07-02 13:18:36 UTC
A inédita conjugação de democracia, crescimento econômico, inflação baixa e distribuição de renda coloca o País num novo patamar de desenvolvimento
Esse é um daqueles fenômenos que acontecem de forma tão lenta e suave que a gente não consegue definir com precisão em que momento a vida mudou. Então, como se você encontrasse uma foto no fundo da gaveta, depois de ter se olhado no espelho, percebe a ação do tempo – e tudo aquilo que foi se desenrolando aos poucos vira instantaneamente uma grande transformação. O Brasil sepultou de uma vez por todas três décadas de crises intercaladas por soluços de crescimento. E o ano de 2008 representa o ingresso numa nova era, marcada por mudanças tão positivas quanto radicais. Nesta edição especial de ISTOÉ você vai entender como as bases para esse salto se processaram ao longo dos últimos governos e por que a nova realidade vai permitir aos brasileiros uma vida melhor.
Se fossem resumidas a manchetes de jornais, as bases das mudanças que aconteceram no Brasil seriam assim estampadas:
O País completa o maior período democrático da história – Levando em conta a conservadora medida de que a democratização começou com a promulgação da Constituição de 1988 (e não com a eleição de Tancredo Neves três anos antes), o Brasil completou 19 anos de inquestionável democracia. Antes, o maior período com eleições diretas e liberdade de opinião tinha sido entre 1946 e 1964.
PIB cresce mais que inflação – Se você tem menos de 60 anos de idade, não sabe o que é isso: pela primeira vez desde 1950, a taxa de variação do Produto Interno Bruto do Brasil vai superar a da inflação. No ano passado, a economia cresceu 3,7% contra uma inflação de 4,18%. Em 2007, a previsão do Banco Central era repetir a mesma inflação, mas com um crescimento de pelo menos 4,7%. Só que, com os resultados do terceiro trimestre, divulgados no dia 11 de dezembro, o País ultrapassará a casa dos 5%. Entre os países do BRIC, novas estrelas da economia mundial, o Brasil tem a menor taxa de inflação. O País, de fato, cresce menos que a média dos emergentes. Mas, quando comparado com Argentina ou Venezuela, seu avanço econômico é mais sólido. Em 1973, no auge do chamado milagre econômico, quando o Brasil teve crescimento de 13,97%, o PIB ganhou da inflação por 0,0044 ponto. A última ocasião em que o País viveu algo parecido com 2007 foi entre 1948 e 1950. Oficialmente, a economia não conhece recessão desde 1992, quando o PIB ficou negativo em 0,47%. Mas as taxas de 1998 e 1999 somadas não dão 0,3% – ou seja, vivíamos na estagnação econômica. Nessa nova fase, já são 22 trimestres consecutivos (cinco anos e meio) de crescimento, na comparação com o mesmo período do ano anterior. “É o mais longo ciclo das últimas décadas”, diz o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Competitividade internacional e deslocamento regional marcam o agronegócio.
A sociedade está menos desigual – Todos os indicadores sociais melhoraram no século XXI. “Incorporamos 30 milhões de brasileiros ao mercado de consumo”, diz o ministro da Economia, Guido Mantega. A taxa de desemprego caiu de 9,7% da população economicamente ativa em 2003 para 8,5% em 2006. A melhoria do nível de emprego tende a ganhar velocidade por causa da curva populacional: com a redução da taxa de fecundidade, o ciclo de superoferta de mão-de-obra registrado nas décadas de 1980 e 1990 está chegando ao fim. A escolarização atinge 97% das crianças. O consumo final das famílias, que inclui gastos com bens de consumo (comida e roupa, por exemplo), é praticamente o triplo de há dez anos. As diferenças regionais estão sendo reduzidas. Segundo o BNDES, o Índice de Desenvolvimento Social (que leva em conta o nível de escolarização, quantidade de domicílios com água e esgoto e renda familiar, entre outras coisas) da região Nordeste se multiplicou por três em uma década. Entre 1995 e 2006, o nível dos indicadores sociais era cinco vezes menor no Nordeste em comparação com o Sudeste. Hoje, ele é apenas a metade do índice do Sudeste. “Não se pode negar que os programas sociais, como o Bolsa Família, ajudaram a reduzir a pobreza e melhorar a renda dos mais pobres”, diz o sociólogo Sérgio Fausto, ligado ao PSDB. Esse avanço social coincide com o declínio dos coronéis da política e a redução do poder do antigo PFL, atual DEM, no Nordeste. Hoje, o partido tem apenas um governador (no Distrito Federal) e dois prefeitos de capitais (no Rio de Janeiro e em São Paulo).
O fato é que democracia, crescimento econômico, inflação baixa, distribuição de renda e redução das disparidades regionais jamais aconteceram ao mesmo tempo no Brasil. Nos anos JK, houve democracia e crescimento, mas com inflação. Durante o milagre econômico dos anos 1970, houve crescimento alto. Mas eram os anos mais virulentos da ditadura. A inflação anual média de 1969 a 1973 foi de 18,4%. Portanto, não pode ser considerada baixa. Na década de 1990, alguns períodos tiveram democracia, inflação sob controle e desenvolvimento. Mas a distribuição de renda foi nuvem passageira, como no início do Plano Real, em 1994. E, em parte como causa, em parte como conseqüência das transformações que esses elementos proporcionam, outras manchetes deveriam estampar o noticiário de 2007.
A dívida externa acabou – Segundo o Banco Central, ela era de US$ 194,6 bilhões em outubro, aí contando as dívidas dos governos e das empresas privadas. Atualmente, as reservas estão em torno de US$ 176 bilhões. Estima-se que até março de 2008 a dívida total seja igual ao nível de reservas. Mas o País nem precisaria chegar a tanto para decretar o fim dessa ameaça que paralisou o Brasil em duas moratórias (1982 e 1987) e em outras duas agudíssimas crises de liquidez (1992 e 1998). Segundo Natan Blanche, da consultoria Tendências, um dos maiores especialistas em câmbio, o Brasil fechará 2007 tendo pago cerca de US$ 2 bilhões em serviço da dívida externa. No próximo ano, os rendimentos do atual nível de reservas serão suficientes para pagar parcelas e juros da dívida externa e ainda sobrarão US$ 3 bilhões no caixa do BC.
As contas públicas são transparentes – Com exceção de esparsas decisões da Justiça que autorizam a correção integral das cadernetas de poupança de março de 1990, no início do Plano Collor, todos os esqueletos dos fracassados planos econômicos da década de 1980 foram incorporados às finanças nacionais. As dívidas dos Estados foram consolidadas e renegociadas, assim como o passivo de estatais e do extinto BNH, que nas décadas de 1970 e 1980 subsidiou a moradia da classe média. Ao lado do Chile, o Brasil tem as mais transparentes contas públicas da América Latina.
O País ficou mais competitivo – Uma sucessão de pequenas reformas – como o Simples, o crédito consignado, a alienação fiduciária, o banco de horas, o consórcio de empregadores e a terceirização de trabalhadores – reduziu o custo da formalização do emprego e facilitou o crédito. Some-se a isso uma melhora incipiente na capacitação profissional e a modernização tecnológica e chega- se à seguinte conclusão: “O primeiro resultado desse conjunto de reformas foi um enorme ganho de produtividade”, diz o economista José Márcio Camargo, da PUC do Rio. “O caso da agricultura é ainda mais exemplar: há poucos anos, tínhamos crédito subsidiado no Banco do Brasil, preço mínimo e uma bancada rural, que vivia de favores do governo. Tudo isso acabou. Investiu-se em pesquisa e produtividade, o País ficou mais competitivo e ganhou mercado com exportações.”
Mudou a curva do desemprego – Pela primeira vez desde o início do Plano Real, os novos postos de trabalho supriram com folga a demanda de quem chegou ao mercado. “Em 2007, estamos batendo o recorde de geração de emprego, com pouco mais de 1,6 milhão de postos formais”, diz o ministro do Trabalho, Carlos Lupi. Foram sete anos com o índice girando acima dos 9%, mas, a ser mantida a média dos últimos dois anos, até o final de 2008 ele deve cair abaixo dos 7% da população economicamente ativa. Sobram vagas para engenheiros com especialização, empresas começam a buscar seus empregados ainda nas universidades e estima-se que existam 40 mil lugares à espera de mão-de-obra qualificada na área de tecnologia de informação (programadores, analistas, webdesigners).
Nunca houve tantos investimentos – Desde o início da série histórica que mede o volume dos investimentos estrangeiros no País, em 1947, o Brasil nunca foi tão beneficiado pelo capital internacional. Ele deve injetar US$ 34 bilhões na conta de 2007. Com um governo ainda às voltas com problemas fiscais, os investimentos externos são o motor da produção e do crescimento. Na prática, esses números traduzem dois movimentos básicos: uma enxurrada de dólares para modernizar o parque industrial e tornar nossa manufatura mais competitiva e outro tanto para investimento em infra-estrutura num país que passou duas décadas sem grandes obras de energia e transporte. No total, o nível de investimentos chegou a 14,4% do PIB, recorde na era do real. “Estamos em um novo patamar de produção”, afirma Jackson Schneider, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. “Uma nova etapa da história que vem ancorada por investimentos pesados das grandes montadoras.” A Fiat, por exemplo, anunciou no início do mês um plano de R$ 6 bilhões, que, entre outras coisas, tornará a fábrica de Betim a maior do mundo, com capacidade para produzir um milhão de carros por ano. A General Motors brasileira prevê investimentos de US$ 500 milhões apenas em 2008.
Entre todos os setores da economia, poucos simbolizam mais essa era de novos investimentos, competitividade extrema e deslocamento regional que a agroindústria, particularmente a produção de frangos. Pela primeira vez na história, o volume total de carne de frango bateu a produção de carne bovina. Novos frigoríficos acabaram de entrar em operação ou estão em fase de conclusão em Estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Produzir frango é agregar valor à soja e ao milho colhidos nesses Estados. Em outubro, essa indústria entregou 891.434 toneladas de carne de frango, recorde histórico que, se não for batido com os resultados de dezembro, certamente não durará no próximo ano.
Diante da sucessão de boas notícias, a questão que os economistas discutem é quanto essas mudanças significam uma virada duradoura. Existem os que acreditam que elas são conseqüência de um quadro internacional favorável que começa a expirar com a crise dos Estados Unidos. “Se a economia internacional fosse igual à que Sarney, Collor e FHC enfrentaram, este seria certamente o pior governo da história”, diz o economista Reinaldo Gonçalves, autor do livro A política econômica do governo Lula. “O Brasil ainda é muito frágil e se houver uma crise internacional vamos sofrer muito.”
Os argumentos da volatilidade do momento são simples e se encadeiam numa espécie de efeito dominó catastrófico. A redução do consumo nos Estados Unidos desacelerará a economia mundial. Os preços dos produtos agrícolas e dos minérios (as commodities) vão cair, a balança de pagamentos do Brasil vai se inverter, o real se desvalorizará, trazendo inflação e inadimplência entre consumidores já altamente endividados. “O Lula tem tanta sorte que pode ser que isso só aconteça no final do governo dele”, vaticina um economista da velha guarda, tucano de carteirinha. Entre os que defendem a existência de um novo paradigma econômico, os olhos também se voltam para o Exterior. Para eles, o Brasil depende muito menos da relação com os Estados Unidos do que no início da abertura comercial do governo Fernando Collor. Em 1990, os EUA representavam quase 25% do total das exportações brasileiras. Hoje, eles seguem como principal parceiro comercial, mas com menos de 18% do fluxo total. Países como China e Argentina, antes quase inexpressivos, ganharam seis pontos em média. O total de países com mais de 1% do volume de exportações brasileiras passou de 18 para 26. Os produtos manufaturados do Brasil devem terminar 2007 tendo a Europa como principal destinatário, depois de mais de duas décadas de hegemonia americana.
O País descobre os benefícios da globalização graças às multinacionais verde- amarelas. Entre os países em desenvolvimento, o Brasil foi o segundo maior investidor externo em 2006. Em 1999, segundo levantamento da Análise Editorial, apenas duas empresas exportavam mais de US$ 2 bilhões. Hoje são 17. Os empresários do ramo de papel e celulose, por exemplo, triplicaram as exportações graças a um investimento de US$ 10 bilhões em dez anos.
Dentro do Brasil houve uma guinada radical no setor produtivo. A maior delas, certamente, remonta há mais de 15 anos – a redução das tarifas de importação que abriu o País para a concorrência mundial. Além disso, outras duas revoluções impulsionaram a economia. A primeira foi a onda de privatizações, que começou timidamente com Collor e se acelerou com Fernando Henrique Cardoso. Elas tiraram o Estado de setores como telecomunicações, mineração e siderurgia, dando-lhes mais racionalidade e competitividade. A segunda revolução está em pleno curso e atende pelo nome de mercado de capitais. Com a redução da inflação e a queda dos juros, amadureceu o investimento em Bolsa de Valores. Ele se deu sob Lula porque só agora o Brasil debelou o último fantasma político, as incertezas do mercado internacional em relação a um governo do PT. A bolsa oferece capital farto e barato às empresas privadas, desde que elas atendam à chamada governança corporativa – uma relação de transparência com o mercado, combinada com uma série de regras de contabilidade e administração que padronizam os números das empresas para os investidores. Das 294 companhias que comercializaram pelo menos uma ação no ano de 2006, 270 são privadas contra 24 estatais. Há dez anos, quase todas que operavam em bolsa tinham o governo como acionista majoritário.
Para uma geração de empresários forjada com crédito do BNDES, cartórios estatais ou influências políticas, a governança corporativa virou um dilema. Manter o poder tradicional num mundo que exige capital e novas tecnologias para competir é quase sempre decretar o lento envelhecimento da empresa. Modernizá-la, em geral, significa dividir a gestão com executivos profissionais, encarregados de preparar a empresa para a abertura de capital na bolsa. O problema dessa segunda opção é que ela custa poder pessoal a quem fez da própria empresa um sinônimo da sua vida. Apenas em 2007, contudo, mais de 62 empresas abriram seu capital, num processo de profissionalização que um alto executivo de um dos maiores bancos brasileiros classifica como “a privatização do setor privado brasileiro”. Não deixa de ser intrigante que a maior parte dessas empresas que abriram capital não integre a lista de sócios da Fiesp. Enquanto muitos capitães da indústria ainda relutam em aderir ao mercado de ações, à profissionalização da gestão e à transparência administrativa, empreendedores ligados ao agronegócio, ao setor de serviços e a novas empresas de segmentos tradicionais, como habitação ou finanças, se beneficiam desse capital farto e barato, gerando mais negócios, lucros e empregos. No Brasil do século 21, a liberdade política se aliou à liberalização econômica para produzir o melhor momento da história do nosso capitalismo.
A era da competição está começando agora. Ela está ancorada em números macroeconômicos mais robustos e transparentes e num crescimento movido pela iniciativa privada, e não por gastos públicos e empresas estatais. O Brasil está tão suscetível a crises quanto qualquer outro país, mas é justo dizer que saímos de uma era de estagnação com soluços de crescimento para outra de desenvolvimento com riscos de desaceleração. São perspectivas bem diferentes. Essa etapa traz, para os próximos anos, uma nova agenda para o País e garante aos brasileiros uma vida melhor.